O dia amanheceu cedo demais para Seu Antônio. Eram quatro da madrugada e seus olhos já se tinham despertado, uma hora antes que de costume. Quando deu por si percebeu o porquê: era sábado, dia de feira. Levantou, deixou sua companheira sonhar um pouco mais e foi ver o mar. Seu Antônio adorava aqueles quilômetros de praia, aquele sol incandescente, a brisa matutina cheirando a maresia, as ondas faceiras como que querendo tocá-lo a cada vai-e-vem. Era ali, sentado num banco improvisado feito de um rolo de coqueiro que ele dava diariamente as boas vindas ao dia, assim como fizeram seu pai e seu avô. Também foi deles que herdou a casa modesta de taipa, a arte de fazer tarrafas, a atividade pesqueira e o apego àquela terra.
Quando sua mulher despertou e lhe preparou o café, deu o afago tímido de sempre nos meninos e começou o dia. Tinha que juntar umas cinco dúzias de coco seco pra vender na feira e tirar todo o peixe da semana do cocho. Era o que dava pra carregar numa viagem só. Prestou atenção num cocho pela primeira vez aos cinco anos, quando seu pai tirou raspou o interior do tronco de um coqueiro, deixando-o oco, e colocou ali uns quilos de peixe entupidos de sal. Era a maneira de driblar a falta do fornecimento de energia elétrica sem ter prejuízos com a pesca.
Pronto. Colocou no caçuá do cavalo, coco de um lado e peixe do outro, e avisou à mulher que já estava saindo, antes de passar na casa do cumpadre, com quem sempre ia à feira. Da praia até o distrito vizinho onde acontecia a feira aos sábados era como uma hora de viagem, a trote lento. No caminho, sempre contavam um ao outro sobre o peixe que pegaram tal dia, uma e outra história que alguém contou ou mesmo da má sorte alheia naquela semana. Mas algo que tava incomodando como espinha de peixe na goela era o tal caso do loteamento da praia. Um fulano tinha comprado grande parte das terras adjacentes e pretendia lotear. Pelo menos era o que falavam. E o cumpadre puxou essa conversa. Seu Antônio sentiu um desânimozinho, um anúncio do que ele sentia quando perdia um peixe grande por muito pouco. Mas a ideia logo se perdeu com a lembrança de que seu menino mais novo completava anos na semana seguinte. Precisava comprar alguma coisa. Ele nunca deixava passar em branco o dia de nenhum dos seus cinco.
Chegando lá, foi logo entregar os cocos encomendados e cuidou de arrumar um lugar pra amarrar o cavalo e descer os caçuás. Como de costume, seguiram-se horas de negociações, perde aqui, ganha ali. Um bezerro se soltou de seu dono e estragou uma dúzia dos seus peixes. “Prejuízo danado!”. Ainda bem que era fim de mês e não demorou muito pra vender o resto dos peixes e dos cocos. Quando o sol já estava quase indo embora, já tinha esvaziado os caçuás. Então, foi pra venda comprar o que dava dos mantimentos da semana, do sal pra conserva do pescado, já que já findava o que tinha em casa, e do querosene. Não podia ficar de fora a lembrança do menino. Mas o dinheiro recém-chegado, subtraído o prejuízo do garrote desembestado, não daria pra tudo. Optou por levar o presente e deixou o querosene. Tudo bem, dormiriam no escuro por uma semana. Valia a pena. Escolheu um pacote de confeito de morango, uma caixa nova de lápis de cor e um caderno de desenho com 50 folhas. Ótimo! O pequeno gostava de pintar mundos e sonhos em papel, como ele próprio gostaria de ter podido pintar, se tivesse frequentado uma escola. O menor dos seus meninos era o que mais se parecia com ele. Filho de peixe mesmo...
A volta era o melhor do dia. A brisa agora soprava de frente e Seu Antônio seguia a direção do mar, sua casa. Não tinha contra-tempo diário que se agigantasse diante da imagem de sua terrinha. Aquela brancura da areia que esconde pegadas antigas, tatuís travessos e conchas cor-de-rosa. O salgado daquelas águas azuis, translúcidas, lúcidas, companheiras, quase um ser a mais naquela natureza solitária. Nem a modernidade ameaçadora que sonha levar embora a promessa de tranquilidade eterna daquelas águas.
Seu Antônio caiu em si e conheceu o caminho de casa. Já estava perto. Chegando lá, desceu as modestas compras com os seus meninos, enquanto sentia no pé do ouvido a frieza de um vento que parecia saudar sua chegada. Viu o pequeno e soube que não esperaria. Pegou o embrulho, enrolado num papel disfarçadamente colorido, e o entregou ao pequeno. Já conhecia o sorriso que lhe agradecia. Na encabulação natural de dizer “obrigado, painho”, o pequeno lhe sorriu um sorriso branco, sincero e cheio de palavras. Sim, valeu a pena. Seu Antônio teve a certeza de que valeria a pena dormir no escuro por uma semana - por mais até - , já que este foi o preço da alegria tremenda de reconhecer a pureza e a simplicidade do seu pequeno paraíso, refletidas nos dentes sinceros de seu “peixinho menor”. Seu Antônio agradeceu lá com ele. Aliás, gratidão era a moeda que mais usava. E foi com olhos marejados que ele sustentou a vista naquela imensidão de água à sua frente e pensou que talvez ainda houvesse tempo de pintar mundos e sonhos. Tinha então uma certeza: os seus ainda estavam vivos e eram azuis.
Nota: Leitura de uma lembrança do passado, inspirada em meu avô Antônio e em minha linda Serrambi.
Ótima história,amiga.
ResponderExcluirJá li, ontem, na Faculdade.Mas agora com muito mais atenção. Como sempre você se supera a cada coisa que faz. Essa história já se parece com você,aliàs com seu avó, que agora conheço um pouco.
Beijos!
Hoje quero falar deste ser fantástico chamada ALINE.
ResponderExcluirEu poderia pesquisar e copiar uma centena de frases e poemas que me ajudassem a definir os meus sentimentos de admiração e de respreito que tenho por esta criatura.
É tão raro encontrar uma pessoa profissional, inteligente como vc tudo junto, num único ser.
Você é um dos seres que eu mais estimo e admiro neste mundo!
Um beijo carinhoso com saudades desta tia maluquinha, rsrsrs...
Parabéns pelo seu desempenho e sucesso.