sexta-feira, 30 de outubro de 2009

AZUL QUE TE QUERO AZUL


O dia amanheceu cedo demais para Seu Antônio. Eram quatro da madrugada e seus olhos já se tinham despertado, uma hora antes que de costume. Quando deu por si percebeu o porquê: era sábado, dia de feira. Levantou, deixou sua companheira sonhar um pouco mais e foi ver o mar. Seu Antônio adorava aqueles quilômetros de praia, aquele sol incandescente, a brisa matutina cheirando a maresia, as ondas faceiras como que querendo tocá-lo a cada vai-e-vem. Era ali, sentado num banco improvisado feito de um rolo de coqueiro que ele dava diariamente as boas vindas ao dia, assim como fizeram seu pai e seu avô. Também foi deles que herdou a casa modesta de taipa, a arte de fazer tarrafas, a atividade pesqueira e o apego àquela terra.

Quando sua mulher despertou e lhe preparou o café, deu o afago tímido de sempre nos meninos e começou o dia. Tinha que juntar umas cinco dúzias de coco seco pra vender na feira e tirar todo o peixe da semana do cocho. Era o que dava pra carregar numa viagem só. Prestou atenção num cocho pela primeira vez aos cinco anos, quando seu pai tirou raspou o interior do tronco de um coqueiro, deixando-o oco, e colocou ali uns quilos de peixe entupidos de sal. Era a maneira de driblar a falta do fornecimento de energia elétrica sem ter prejuízos com a pesca.

Pronto. Colocou no caçuá do cavalo, coco de um lado e peixe do outro, e avisou à mulher que já estava saindo, antes de passar na casa do cumpadre, com quem sempre ia à feira. Da praia até o distrito vizinho onde acontecia a feira aos sábados era como uma hora de viagem, a trote lento. No caminho, sempre contavam um ao outro sobre o peixe que pegaram tal dia, uma e outra história que alguém contou ou mesmo da má sorte alheia naquela semana. Mas algo que tava incomodando como espinha de peixe na goela era o tal caso do loteamento da praia. Um fulano tinha comprado grande parte das terras adjacentes e pretendia lotear. Pelo menos era o que falavam. E o cumpadre puxou essa conversa. Seu Antônio sentiu um desânimozinho, um anúncio do que ele sentia quando perdia um peixe grande por muito pouco. Mas a ideia logo se perdeu com a lembrança de que seu menino mais novo completava anos na semana seguinte. Precisava comprar alguma coisa. Ele nunca deixava passar em branco o dia de nenhum dos seus cinco. 

Chegando lá, foi logo entregar os cocos encomendados e cuidou de arrumar um lugar pra amarrar o cavalo e descer os caçuás. Como de costume, seguiram-se horas de negociações, perde aqui, ganha ali. Um bezerro se soltou de seu dono e estragou uma dúzia dos seus peixes. “Prejuízo danado!”. Ainda bem que era fim de mês e não demorou muito pra vender o resto dos peixes e dos cocos. Quando o sol já estava quase indo embora, já tinha esvaziado os caçuás. Então, foi pra venda comprar o que dava dos mantimentos da semana, do sal pra conserva do pescado, já que já findava o que tinha em casa, e do querosene. Não podia ficar de fora a lembrança do menino. Mas o dinheiro recém-chegado, subtraído o prejuízo do garrote desembestado, não daria pra tudo. Optou por levar o presente e deixou o querosene. Tudo bem, dormiriam no escuro por uma semana. Valia a pena. Escolheu um pacote de confeito de morango, uma caixa nova de lápis de cor e um caderno de desenho com 50 folhas. Ótimo! O pequeno gostava de pintar mundos e sonhos em papel, como ele próprio gostaria de ter podido pintar, se tivesse frequentado uma escola. O menor dos seus meninos era o que mais se parecia com ele. Filho de peixe mesmo...

A volta era o melhor do dia. A brisa agora soprava de frente e Seu Antônio seguia a direção do mar, sua casa. Não tinha contra-tempo diário que se agigantasse diante da imagem de sua terrinha. Aquela brancura da areia que esconde pegadas antigas, tatuís travessos e conchas cor-de-rosa. O salgado daquelas águas azuis, translúcidas, lúcidas, companheiras, quase um ser a mais naquela natureza solitária. Nem a modernidade ameaçadora que sonha levar embora a promessa de tranquilidade eterna daquelas águas.

Seu Antônio caiu em si e conheceu o caminho de casa. Já estava perto. Chegando lá, desceu as modestas compras com os seus meninos, enquanto sentia no pé do ouvido a frieza de um vento que parecia saudar sua chegada. Viu o pequeno e soube que não esperaria. Pegou o embrulho, enrolado num papel disfarçadamente colorido, e o entregou ao pequeno. Já conhecia o sorriso que lhe agradecia. Na encabulação natural de dizer “obrigado, painho”, o pequeno lhe sorriu um sorriso branco, sincero e cheio de palavras. Sim, valeu a pena. Seu Antônio teve a certeza de que valeria a pena dormir no escuro por uma semana - por mais até - , já que este foi o preço da alegria tremenda de reconhecer a pureza e a simplicidade do seu pequeno paraíso, refletidas nos dentes sinceros de seu “peixinho menor”. Seu Antônio agradeceu lá com ele. Aliás, gratidão era a moeda que mais usava. E foi com olhos marejados que ele sustentou a vista naquela imensidão de água à sua frente e pensou que talvez ainda houvesse tempo de pintar mundos e sonhos. Tinha então uma certeza: os seus ainda estavam vivos e eram azuis.

Nota: Leitura de uma lembrança do passado, inspirada em meu avô Antônio e em minha linda Serrambi.